NASCE UM ESCRITOR
Clarence Malcolm Lowry nasce a 28 de Julho de 1909 em Wallasey, no condado de Cheshire, Inglaterra, no seio de uma família burguesa. É o mais novo dos quatro filhos de Arthur Lowry, rico comerciante de algodão em Liverpool, com propriedades no Egipto, Peru e Estados Unidos, exemplo de páter-famílias trabalhador, dedicado aos preceitos do protestantismo, valores com que educa os filhos, mas que o benjamim, por rebeldia, não acolhe. Preferirá as leituras de Melville ou Conrad Aiken e, em 1927, com 18 anos, suplica ao pai uma viagem ao Oriente. O inquieto Malcolm, agora aprendiz de lobo-do-mar e ajudante de fogueiro, embarca então no navio de carga S.S. Pyrrhus, iniciando uma viagem de seis meses que o levará de Liverpool ao Canal do Suez, Xangai, Japão e Vladivostoque e que estará na origem de Ultramarina. De volta a casa, as aulas em Cambridge já haviam começado, estando o ano escolar, por consequência, perdido. Malcolm bebe como um velho marujo, o que naturalmente preocupa o pai, abstémio e atento ao comportamento do jovem. Por isso, decide matriculá-lo num colégio tido por rigoroso, em Bona, na Alemanha, até começar novo ano lectivo.
No regresso a Inglaterra toma contacto com um livro que será determinante na sua decisão de se dedicar à escrita. Na leitura de Blue Voyage, de Conrad Aiken, escritor norte-americano a viver em Inglaterra, Lowry julgou encontrar a chave de uma estrutura romanesca moderna aliada à grandiosidade da escrita. Aiken passará a ser, a partir de agora, a sua referência; Malcohol, assim chamado pelo mestre, vai com ele para o continente americano, aproveitando para se dedicar com muito entusiasmo a Ultramarina. No Outono de 1929, Malcolm regressa a casa e entra finalmente na Universidade de Cambridge: a par dos estudos, vai revendo o romance. Um dia descobre, perplexo, um livro cujo protagonista é um rapaz socialmente bem instalado que decide experimentar a dureza da vida a bordo. O paralelismo de The Ship Sails On com a história que está a escrever é óbvio; decide por isso ir à Noruega conhecer o seu autor, Nordahl Grieg, que o incentiva a acabar a obra, finalmente publicada por Jonathan Cape, que viria a ser o seu editor em Inglaterra, em 1933.
A sua fama de bebedor e os escândalos em que se envolvia iam aumentando. Contrariado e com algum receio, o pai autoriza-o a passar uns tempos em Paris com a condição de frequentar a Sorbonne. Afinal, Malcolm tinha concluído o curso de Filologia Inglesa e a viagem de certa forma constituiria um prémio. Em França, não vai às aulas, mas a sua conduta não sofre grandes reparos, aprendendo a língua francesa e entregando-se à leitura de Rimbaud e Baudelaire.
O CASAMENTO COM JAN GABRIAL
Na Primavera de 1933 vai com o casal Aiken passar uns tempos a Espanha, a viver então a Segunda República. Provou a aguardente, não poucas vezes em demasia, e chegou a ter problemas com a Guardia Civil andaluza, despertando nos Aiken o desejo de o recambiar para Inglaterra. Até que o milagre aconteceu: no dia 19 de Maio conhece e perde-se de amores por Jan Gabrial, uma bela jornalista norte-americana que estava de férias em Granada (também Yvonne e Geoffrey, de Debaixo do Vulcão, se conheceriam nesta cidade). Jan vai a caminho de Paris (está com um amigo francês), simpatiza com o escritor mas resiste a um romance. Malcolm fica despedaçado, a bebida é o seu refúgio, as autoridades espanholas começam a perder a paciência. No regresso a casa passa por terras lusas, chegando a Londres no final de Maio e ficando vários dias hospitalizado para proceder à desintoxicação de um corpo cheio de aguardente espanhola e, quem sabe, portuguesa.
Em Outubro, Jan, acabada de chegar à capital inglesa, encontra Malcolm casualmente numa sala de espectáculos com o mesmo nome do local onde se haviam conhecido meses antes – o Alhambra Palace. A paixão renasce, desta vez correspondida, acabando triunfalmente e sob o romantismo parisiense em casamento pouco tempo depois, em 6 de Janeiro de 1934. Apesar do casamento, Lowry continua a beber, fazendo com que Jan vá perdendo, gradualmente, a paciência. Estavam casados há pouco mais de um mês quando a mulher parte de férias com uns amigos pela Europa, deixando-o em Paris. Ainda se reencontraram algumas vezes antes de Jan regressar aos Estados Unidos, onde a família a esperava, deixando um marido perdido de álcool e de dor. No entanto, Malcolm não desiste, arrepende-se, considera possível uma reconciliação. Parte para Londres, onde logo apanha um barco para Nova Iorque. Reconquista Jan, alugam um pequeno apartamento em Manhattan e aí vivem juntos durante cerca de um ano.
DO AMOR À LOUCURA, COM O ÁLCOOL PELO MEIO
Em Nova Iorque, Lowry continua a trabalhar num romance que o envolve há alguns anos, In Ballast to the White Sea, e que acabaria por desaparecer no incêndio da sua futura casa em Dollarton (Canadá), tendo sido salvas apenas algumas das mais de duas mil páginas. Pouco se sabe desta obra, o argumento gira à volta da incapacidade de amar e do… alcoolismo, levando-nos, inevitavelmente, a concluir que, tal como acontecera com Ultramarina, o escritor não resiste a colocar no papel as experiências por que passou e a ficcionar, no fundo, a sua própria existência.
Separado mais uma vez de Jan, Malcolm acede a ser internado num hospital para tratamento psiquiátrico. No final de Maio de 1936, após duas semanas de terapia, profundamente impressionado com o que viu, começa a escrever um conto chamado Delirium on the East River. A história trata de um homem com problemas conjugais causados pelo alcoolismo que é internado num hospital psiquiátrico. Mais uma vez, Lowry recorre às suas vivências para fonte de inspiração literária. Como ele trabalhava exaustivamente cada obra, não admira que o conto fosse crescendo e rapidamente se transformasse numa novela. Alguns meses passados daria origem a The Last Address, acabando por assumir, poucos anos depois, o título definitivo: Lunar Caustic.
Em Setembro retoma a relação com Jan Gabrial. Defensores de que a mudança é benéfica, decidem viajar para Los Angeles, onde era fértil o trabalho de guionista e Lowry esperava ser contratado pela MGM. Mas as coisas não correram como esperavam, o trabalho não apareceu, os dólares estavam a acabar. Lembraram-se então de que no México, ali ao lado, a vida era muito mais barata. E quando, no final de Outubro de 1936, o S.S. Pennsylvania aportou em Acapulco, desembarcaram em solo mexicano dois passageiros muito especiais.
MÉXICO!
Chegar ao México em vésperas do Dia dos Mortos é viver uma experiência singular. As ruas estão adornadas com papel colorido recortando caveiras e esqueletos, uma imensidão de vendedores prepara apetitosos tacos, burritos, quesadillas e, sobretudo, tamales, vendem-se flores como nunca, de preferência amarelas, as crianças comem risonhas caveiras de açúcar. Os mariachis tocam com outro vigor entre o rebentamento dos foguetes, as pessoas aderem à festa, a morte sabe a chocolate. Um ambiente destes, com um clima que nada tem do rigor das ilhas britânicas e tão diferente do mundo a que estava habituado, não podia deixar de impressionar e, mais, seduzir Lowry.
Depois de uns dias na capital mexicana, o casal chega a Cuernavaca, alugando uma casa com piscina e jardim na Rua Humboldt, nº 62. A cidade, a recuperar ainda da Revolução, não é grande mas já ganhou a designação de “Cidade da eterna Primavera”, motivando capitalinos (a menos de duas horas de viagem, na época) e turistas norte-americanos a construírem ali a sua casa de férias. E tem outra coisa que muito agrada ao escritor: 57 bares!
Lowry começa aqui a escrever a primeira versão de Debaixo do vulcão, que irá desenvolver durante todo o ano seguinte. Em Dezembro de 1937, Jan abandona-o em definitivo e Lowry vai afogar a dor para Oaxaca, onde, haviam-lhe dito, se faz o melhor mescal. Nesta cidade conhece Juan Fernando Márquez, o amigo mexicano que irá inspirar as figuras do Dr. Vigil e de Juan Cerillo. É muito fácil supor que tenha conhecido todos os lugares onde pudesse molhar a garganta, incluindo, naturalmente, a cantina El Farolito, que transplantará para a literatura. Devido à bebida ou porque foi confundido com um militante comunista gringo, como sustenta, a verdade é que Lowry passa o Natal na cadeia.
Os problemas com as autoridades mexicanas estavam apenas a começar, a polícia começava a reparar no inglês que só bebia e provocava desacatos. A 18 de Março de 1938 expirava o visto que o autorizava a permanecer no país, facto que não preocupou muito Malcolm Lowry. O problema é que, nesse mesmo dia, o Presidente Lázaro Cárdenas nacionalizou as companhias petrolíferas, originando um conflito diplomático com a Inglaterra. A partir dessa data, Lowry estava não só em situação ilegal, como não era, por ser inglês e um bebedor incorrigível, particularmente desejado. Por isso não causou estranheza o facto de meses depois, a poucos dias de fazer 29 anos, ser metido à força num comboio rumo a Nogales, fronteira com os Estados Unidos.
DEBAIXO DO VULCÃO E… MÉXICO, OUTRA VEZ
Em Los Angeles procura Jan, que arranjara entretanto novo companheiro. Através de amigos, conhece uma ex-actriz, Margerie Bonner, com quem casa, indo viver para Vancouver, depois de ter sido expulso dos Estados Unidos. No Canadá alugaram uma pequena cabana junto ao mar. Lowry trabalhará a terceira versão de Debaixo do Vulcão, que o editor Jonathan Cape considera muito espessa e confusa, apesar de ter partes com grande brilhantismo e de grande comoção. Recusada, portanto.
É nessa altura que Malcolm Lowry começa a perceber o que escreve como um projecto mais global, com uma grande ambição literária, a que chamou “A viagem que nunca termina”. À maneira de A Divina Comédia de Dante Alighieri, o projecto assentaria numa trilogia que desse a conhecer o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. O Purgatório seria Lunar Caustic; o Paraíso, In Ballast to the White Sea; e o Inferno, Debaixo do Vulcão, naturalmente.
No dia 7 de Junho de 1944 um incêndio destruiu a cabana onde viviam. Correndo risco de vida, Margerie conseguiu salvar a quarta versão do manuscrito e alguns poemas, perdendo-se o resto da obra em que Lowry vinha aos poucos a trabalhar. Aceitam a ajuda de um amigo, que lhes disponibiliza a sua casa em Toronto. É do outro lado do Canadá, mas não havia alternativa. Na noite de Consoada desse ano, Lowry considera acabado o romance em que está envolvido há quase oito anos.
No início do novo ano o casal regressa a Dollarton com o intuito de reconstruir a cabana e em Fevereiro o escritor recebe a notícia de que o pai morrera. Apesar das constantes críticas que Arthur Lowry permanentemente fazia ao filho pela sua opção de vida, não aceitando o facto de ele, ao contrário dos irmãos, preterir o mundo dos negócios, a verdade é que nunca deixou de lhe proporcionar uma mesada de 100 dólares. Em Junho, Lowry envia o manuscrito ao editor, pega no que lhe coube em herança, aplica parte na recuperação da casa e o casal decide viajar até ao México.
Em Dezembro de 1945 está no Hotel Canadá, na Cidade do México, onde anos antes se hospedara com a primeira mulher. Seguem para Cuernavaca, ficando numa casa na mesma Rua Humboldt. Numa viagem a Oaxaca em busca do amigo Fernando, Lowry recebe a notícia de que morrera baleado num bar, algures em Tabasco, para onde o enviara o banco onde trabalhava. A Lowry não resta mais do que homenageá-lo numa obra em que tem vindo a trabalhar, Dark as the Grave Wherein My Friend Is Laid, tida como a continuação de Debaixo do Vulcão.
Em Março, o casal decide ir passar uma temporada a Acapulco. As autoridades reclamam a Lowry uma pretensa multa que ficara por pagar aquando da sua primeira passagem pelo México. O casal está sem passaportes, Margerie, temendo perdê-los, deixara-os guardados em casa, em Cuernavaca. Lowry contesta os 50 pesos da infracção, envolve-se num processo kafkiano e, em Maio, acaba de novo por ser expulso de um país que ama profundamente. Antes, a 6 de Abril, recebera uma dupla de boas notícias: tanto Jonathan Cape, em Inglaterra, como a editora norte-americana Reynal and Hitchcock publicariam Debaixo do Vulcão.
O resto pertence, já se sabe, à História. Regressa ao Canadá, à sua casa de Dollarton. Em Nova Iorque, os excessos dos festejos da publicação do livro acabam em internamento. Lowry e Margerie decidem fazer uma viagem pela Europa, que ela não conhecia, e da qual resultam novas hospitalizações em França e Itália. No regresso a casa, Lowry trabalha com a determinação que a pausa na bebida consente. Em 1952 assina um contrato com a prestigiada Random House, o que lhe permite receber uma mensalidade para finalizar, entre outras obras, Lunar Caustic e Dark as the Grave Wherein My Friend Is Laid. No dia 27 de Junho de 1957, Margerie e Lowry discutem violentamente. Amedrontada com as ameaças de morte, Margerie passa a noite em casa de vizinhos. Na manhã seguinte, ao entrar em casa, encontrará o corpo do escritor no chão, tendo ao lado uma embalagem de barbitúricos vazia e uma garrafa de genebra em pedaços.
QUAUHNAHUAC HOJE
Se para os amantes da literatura é imenso o legado de Debaixo do Vulcão, o que nos resta da Quauhnáhuac de 1937? Os elementos geográficos, naturalmente, ainda estão lá: O Popocatépetl, ligado pela Passagem de Cortés ao Iztaccíhuatl, repousa adormecido há dois anos, quando se deu a sua última erupção. A cidade perdeu nestes 70 anos muitas das características da obra. As ruas continuam a ser estreitas e sinuosas mas já não são azinhagas de terra batida. O Jardim Morelos ainda é o centro da cidade, os casais apaixonados ainda procuram a cumplicidade da sombra dos louros e ao lado, no Jardim Juárez, no coreto que Porfirio Díaz mandou vir da Europa, podemos ouvir a fanfarra municipal às quintas e domingos. Em frente, o imponente Palácio de Cortés, outrora residência do conquistador construída sobre as ruínas de uma pirâmide, é o mais velho edifício civil do país e alberga hoje o Museu Cuauhnáhuac. Nas paredes do primeiro andar estão alguns dos mais conhecidos murais de Diego Rivera.
O Hotel Casino de la Selva, onde no romance um ano depois o Dr. Vigil e Jacques Laruelle recordam os trágicos acontecimentos, já não existe. Com a proibição do jogo no México, o casino entrou em declínio. Em 2001, a sua iminente destruição suscitou um amplo debate na sociedade mas acabou por ser derrubado para dar lugar a mais um supermercado do grupo Comercial Mexicana. Os murais do hotel de que fala a obra de Lowry estão conservados e integrados no novo Centro Cultural Muros. O caminho-de-ferro também já não serve a cidade. O edifício da estação, longe do centro, junto à grande Avenida Plan de Ayala, e a caminho dos lugares romanceados de Tomalín ou Parían (onde fica o célebre El Farolito), acompanhou a degradação do lugar. Não muito distante, o barranco de Amanalco, onde o corpo de Geoffrey Firmin se perdeu para sempre, continua a intimidar. O Cine Morelos, que exibia o filme Las Manos de Orlac que tanto incomodava o ex-cônsul, ainda funciona, não na Avenida Revolución, que a obra refere e em cujo nº 8 o Dr. Vigil tinha consultório (não há, de resto, memória, em Cuernavaca, de uma rua com esse nome), mas na Avenida Morelos.
O Jardim Borda, casa de Verão do Imperador Maximiliano e onde Emiliano Zapata e Porfirio Díaz deram grandes banquetes, está recuperado e foi posto ao serviço das artes. A poucos metros, na parede da Catedral, Inocêncio III continua a proteger S. Francisco de Assis. Finalmente, a casa onde ficou na segunda viagem, na Rua Humboldt (a mítica Calle Nicaragua), permanece de pé graças aos esforços dos admiradores do escritor em Cuernavaca e da Fundação Malcolm Lowry. Hoje tem o nº 17, em frente termina a Rua Bartolomé de las Casas. Na obra é a casa de Laruelle, que ostenta o célebre “no se puede vivir sin amar”, e nela está instalado o Hotel Bajo el Volcán.
Debaixo do Vulcão é consensualmente considerada uma das grandes criações literárias do século XX. Não é uma obra fácil, a sua leitura não é linear, tendo vários níveis interpretativos, e, porque Lowry era bastante místico, imensas referências ocultas e cabalísticas (a célebre carta a Cape de 2 de Janeiro de 1946 demonstra-o bem), tendo sempre suscitado, também por isso, um amplo e por vezes difícil debate. A Fundação Malcolm Lowry promove o autor e a sua obra, e à sua volta milita um contingente de indefectíveis admiradores nos quatro cantos do mundo. Octavio Paz considera que o tema principal da obra é a expulsão do Paraíso; Lowry, na carta atrás referida, vai mais longe: “Por cada mil escritores que podem criar personagens convincentes até à perfeição apenas um dirá algo de novo sobre o fogo do Inferno. E o que eu digo é algo de novo sobre o fogo do Inferno.” Malcolm Lowry, autor de uma das grandes obras da Literatura, sabia do que falava.
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